12 maio, 2011

Dynata Dynata

                                                                                                             _ O Beijo - Constantin Brancuse


Museus parecem carregar vidas. Objetos que pertenceram outrora a pessoas de uma época passada, quando senão também a imagem dos donos dos pertences. É como uma atmosfera que nos transporta no tempo. Um clima um tanto nostálgico. Ás vezes feliz, em outros momentos trágico, pesado. Mas ali alguma coisa estava errada, muito errada. Foi quando percebi um barulho. Na verdade um som. Um som alegre, uma música. Aquele deveria ser um ambiente silencioso. É verdade que o que foge do habitual nem sempre é inconveniente. Segui o fluxo me deixando guiar pela origem dos acordes. Encontrei-me em uma sala não muito grande. Flashes de vídeos mostravam danças. Danças de diferentes países, épocas. Mas todas tão típicas. Nada parecido com aquilo que chamam de música e é processado de forma tão automática e rápida quanto a velocidade com que é distribuído e escutado no mundo inteiro como expressão de uma cultura única em todo o globo ou talvez uma ausência de singularidade e gosto próprio na maneira de se expressar. Parei diante de uma tela em que pessoas cantavam juntas com feição alegre, amistosa, recitavam versos que me pareciam gregos. Eu costumava ouvir música grega em algum momento da minha vida. Lembro bem quando compreendi pela primeira vez uma simples palavra na letra de uma canção grega. Dynata. Ela se repetia muitas vezes. Dynata, dynata... ou seja possibilidades. Em um ritmo sinestésico que te faria correr atrás do trem e fugir com o circo. Era isso: possibilidades. Fugir com o circo é uma possibilidade. Realmente existem momentos em que acreditamos que tudo é possível. Em algum instante na infância quando brincamos de amarelinha enquanto pulamos ao mesmo tempo em que contávamos até nove arquivamos no subconsciente que o céu é o limite. As crianças ainda brincam de amarelinha? Terei de perguntar isto a Sara.  É uma possibilidade. Toda pessoa já se arrependeu de ter feito algo. Ou de não ter feito. De ter cedido ao momento ou de ter reprimido um desejo. Possibilidades. Talvez isso resuma a vida. Suas escolhas determinam seu leque de alternativas. Se fossemos parar para analisar em como as curvas dos labirintos de possibilidades que surgiram no caminho poderiam ter nos guiado em tantos finais distintos seria ainda mais confuso. Talvez eu não seria eu mesma. Eu seria um outro alguém que não existe. Quem sabe gostaria de outras músicas, comidas, paixões ou teria outros filhos, ou não os teria, uma outra família. Então me lembrei de quando estava em casa com Daniel. Meu melhor amigo de tantos anos. Estávamos sentados tomando chá. Estava ali olhando meu reflexo dentro da xícara. Mas aquele rosto não parecia o meu. Eu não tinha tantas rugas. Senti um aperto firme na minha mão. Familiar, seguro, protetor. Ele estava me fitando. O mesmo olhar de sempre. Sonhador. Lindo. Como fui deixar que ele me visse assim?
_ Por que está ficando vermelha? – Ele me perguntou.
_ É que me esqueço de que estou morrendo. Quando me vejo estranho. Como você consegue?
_Consigo o que?
_ Me reconhecer. Como pode acreditar que essa velha era a moça bonita que estava com você?
_ Então é nisso que está pensando?
Assenti com a cabeça.
_ Agora me deixou muito preocupado.
Olhei para o rosto dele e só pude perceber um sorriso cínico. Ai Deus,  sempre fui louca por esse cinismo, o quanto eu amei o humor inteligente dele. Ele continuou:
_ É essa a imagem que você tem de mim? Um velho estranho?
 Senti uma lágrima escorrendo. Daniel tocou meu rosto, deitei minha cabeça nos seus ombros. Continuávamos de mãos dadas. Minha boca travada. Não consegui falar nada. Não respondi. Depois de uns minutos ele falou enquanto percorria com os dedos os caminhos que as lágrimas haviam feito na minha face:
_Você tem razão. Não é mais a mesma coisa. Passamos por muitas mudanças.
As lágrimas secaram, olhei em choque para ele. Mas ainda sorria. Dessa vez um sorriso tranquilo.
 _ Cada marca em nossos rostos deixa clara a nossa história. Cada ruga espelha os nossos passos. Pegadas das nossas manias repetidas.
Dessa vez também sorri. Falei:
_Eu ainda te odeio! Eu odeio como ainda caio nos seus jogos de palavras.
_ Eu te odeio mais meu bem.
_ Eu te amei e odiei tanto - Falei segurando de novo sua mão.
_ A verdade é que eu amo isso_ Fez uma pausa reflexiva, como se procurasse as palavras, esperei que concluísse _ A nossa essência. O que construímos juntos. Eu amo o que somos quando estamos juntos.
Eu escolheria essa possibilidade infinitas vezes seguidas. Encostei minha cabeça no peito dele. Ouvi seu coração. A sua respiração. Para mim sempre soou melhor do que o som da chuva. Paz. Fechei os olhos. Suspirei.
_Meu coração ainda bate forte por você_ eu falei_ Já pensou que estranho seria para os primeiros amantes da humanidade. Não entender o que é essa força pulsando lá dentro do peito?
Daniel sempre riu de coisas que eu não disse com a intenção de que soassem engraçadas. Depois de algum tempo percebi que não era por mal. Ele beijou a minha testa.
_Viu só? Você ainda parece uma criança. Pergunta o porquê de tudo, as coisas mais inimagináveis. Mas pensando melhor, não é à toa que o coração é símbolo do amor.
Então senti um toque no meu ombro que fez com que eu voltasse ao hoje. A música grega se fora. Poemas estonianos eram recitados em cantigas.
_ Vovó, já é hora de voltarmos para casa. _ disse Sara.
_ Sim, meu anjinho, vamos.
Segurei aquela mão delicada, tão jovem, que me irradiava ondas de afeto e carinho. Casa. Casa. Depois que Daniel se foi eu saí da nossa casa. Ela era tão... nossa. Decidi que seria bom passar um tempo na casa da Lívia. Desde então levo a pequena Sara para dar uma volta no fim da tarde a cada dia, assim como fazia com Daniel. Quando ele estava bem disposto sempre a levávamos conosco. Ela é realmente linda. Tem uma cara de menina sapeca, grandes olhos castanhos meigos e curiosos ao mesmo tempo. O rosto moldado por cachinhos brilhantes e escuros. Suas mãos são como as de Daniel. Dedos compridos que adoram passear pelas teclas do piano do avô. Mãos que compartilham o mesmo dom. Desde bem cedo Daniel havia percebido. A partir de então Sara passava cada vez mais tempo em nossa casa. Daniel foi o seu tutor. Depois que aconteceu, Sara por um tempo parou de tocar. Disse que não poderia sem o avô. Ao chegarmos em casa ela seguiu o mesmo itinerário que faz há uma semana. Começa por composições de Shumann e Villa-Lobos segue com alguma música como Your Song do Elton John , ou qualquer outra que faça parte das prediletas de Daniel. Aí depois se sente livre para viajar entre as suas preferências. Interpreta suas próprias versões de músicas atuais, às vezes acompanhando com sua voz afinada. São as minhas doces canções de ninar. Chega uma hora em que é preciso inverter os papéis.
  

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